JACQUES LE GOFF
História e memória
1. Que relações existem entre a história vivida, a história "natural", senão"objetiva", das sociedades humanas, e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta evolução, a ciência histórica? O afastamento de ambas tem, em especial, permitido a existência de uma disciplina ambígua: a filosofia da história. Desde o início do século, e sobretudo nos últimos vinte anos, vem se desenvolvendo um ramo da ciência histórica que estuda a evolução da própria ciência histórica no interior do desenvolvimento histórico global: a historiografia, ou história da história.
2. Que relações tem a história com o tempo, com a duração, tanto com o tempo"natural' e cíclico do clima e das estações quanto com o tempo vivido e naturalmente registrado dos indivíduos e das sociedades? Por um lado, para domesticar o tempo natural, as diversas sociedades e culturas inventaram um instrumento fundamental, que é também um dado essencial da história: o calendário; por outro, hoje os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações entre história e memória.
3. A dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado).
3. A dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado).
Em geral, esta oposição não é neutra mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como por exemplo nos pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antiguidade ao século XVIII desenvolveu-se, ao redor do conceito de decadência, uma visão pessimista da história,que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da história no século XX. Já com o Iluminismo afirmou-se uma visão otimista da história a partir da ideia de progresso, que agora conhece, na segunda metade do século XX, uma crise. Tem, pois, a história um sentido? E existe um sentido da história?
À história estão intimamente conectados dois progressos essenciais: a definição de pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, era cristã, hégira e assim por diante) e a busca de uma periodização, a criação de unidades iguais,mensuráveis, de tempo: dia de vinte e quatro horas, século, etc.Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. 3-4) A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. Para a criança, "compreender o tempo significa libertar-se do presente" (Piaget), mas o tempo da história não é nem o do psicólogo nem o do linguista Todavia o exame da temporalidade nestas duas ciências reforça o fato de que a oposição presente/passado não é um dado natural mas sim uma construção. Por outro lado, a constatação de que a visão de um mesmo passado muda segundo as épocas e que o historiador está submetido ao tempo em que vive, conduziu tanto ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer o passado quanto a um esforço para eliminar qualquer referência ao presente(ilusão da história romântica à maneira de Michelet – "a ressurreição integral do passado' – ou da história positivista à Ranke – "aquilo que realmente aconteceu'). Com efeito, o interesse do passado [pg. 014] está em esclarecer o presente; o passado é atingido a partir do presente (método regressivo de Bloch). Até o Renascimento e mesmo até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma época de inocência e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades-do-ouro, o paraíso terrestre... a história do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadência. Esta ideia de decadência foi retomada para exprimir a fase final da história das sociedades e das civilizações; ela se insere num pensamento mais ou menos cíclico da história (Vico,Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e é em geral o produto de uma filosofiar e acionária da história, um conceito de escassa utilidade para a ciência histórica. Na Europa do final do século XVII e primeira metade do XVIII, a polêmica sobre a oposição antigo/moderno, surgida a propósito da ciência, da literatura e da arte,manifestou uma tendência à reviravolta da valorização do passado: antigo tornou-se sinônimo de superado, e moderno de progressista. Na realidade, a ideia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no século XIX e início do XX, considerando sobretudo os progressos científicos e tecnológicos. Depois da Revolução Francesa, à ideologia do progresso foi contraposto um esforço de reação, cuja expressão foi sobretudo política, mas que se baseou numa leitura "reacionária" da história. Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encarnação histórica "objetiva" de um possível apocalipse –, a descoberta de culturas diversas do ocidente conduziram a uma crítica da ideia de progresso (recorde-se La crise du progrès, de Friedmann, de 1936). A crença num progresso linear, contínuo,irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. A história que não domina o futuro passa a defrontar-se com crenças que conhecem hoje um grande revival: profecias, visões em geral catastróficas do fim do mundo ou, pelo contrário, revoluções iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos tanto nas seitas das sociedades ocidentais quanto em certas sociedades do Terceiro Mundo. É o retomo da escatologia [pg. 015].
Mas a ciência da natureza e, em particular, a biologia mantêm uma' concepção positiva, se bem que atenuada, do desenvolvimento enquanto progresso. Estas perspectivas podem aplicar-se às ciências sociais e à história. Assim, a genética tende a recuperar a ideia de evolução e progresso, porém, dando mais espaço ao evento e - às catástrofes (Thom): a história tem todo o interesse em inserir na sua problemática a ideia de gênese -'dinâmica – no lugar daquela, passiva, das origens, que Bloch já criticava.
5) Na atual renovação da ciência histórica, que se acelera, quanto mais não seja ao menos na difusão (o incremento essencial veio com a revista 'Annales', fundada por Bloch e Febvre em 1929), um papel importante é desempenhado por uma nova concepção do tempo histórico. A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefado historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais importante seria o nível mais profundo das realidades que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estruturas) – trata-se do nível das "longas durações" (Braudel). O diálogo dos historiadores da longa duração com as outras ciências sociais e com as ciências da natureza e da vida – a economia e a geografia ontem, a antropologia, a demografia e a biologia hoje – conduziu alguns deles à ideia de uma história "quase imóvel" (Braudel,Le Roy Ladurie). Colocou-se então a hipótese de uma história imóvel. Mas a antropologia histórica caminha no sentido contrário da idéia de que o movimento, a evolução se encontrem em todos os objetos de todas as ciências sociais, pois seu objeto comum são as sociedades humanas (sociologia, economia mas também antropologia). Quanto à história, ela só pode ser uma ciência da mutação e da explicação da mudança.Com os diversos estruturalismos, a história pode ter relações frutíferas sob duas condições: a) não esquecer que as estruturas por ela estudadas são dinâmicas; b) aplicar certos métodos estruturalistas ao estudo dos documentos históricos, à análise dos textos (em sentido amplo), não à explicação histórica propriamente dita. Todavia podemos perguntar-nos se a moda do estruturalismo não está ligada a uma certa recusa da história concebida como ditadura do passado, justificativa da "reprodução" (Bourdieu), poder de [pg. 016]
repressão. Mas também na extrema esquerda reconheceu-se que seria perigoso fazer "tábula rasa do passado" (Chesneaux). O "fardo da história" no sentido "objetivo"do termo (Hegel), pode e deve encontrar o seu contrapeso na ciência histórica como"meio de libertação do passado" (Arnaldi).
6) Ao fazer a história de suas cidades, povos, impérios, os historiadores da Antiguidade pensavam fazer a história da humanidade. Os historiadores cristãos, os historiadores do Renascimento e do Iluminismo (não obstante reconhecessem a diversidade dos "costumes") pensavam estar fazendo a história do homem. Os historiadores modernos observam que a história é a ciência da evolução das sociedades humanas. Mas a evolução das ciências levou a pôr-se o problema de saber se não poderia existir uma história diferente daquela do homem. Já se desenvolveu uma história do clima; contudo, ela apresenta um certo interesse para a história só na medida em que esclarece certos fenômenos da história das sociedades humanas (modificação das culturas, do habitat, etc.). Agora se pensa numa história da natureza (Romano), mas ela reforçará sem dúvida o caráter "cultural" – portanto, histórico – da noção de natureza. Assim, através das ampliações do seu âmbito, a história se torna sempre co-extensiva em relação ao homem.Hoje, o paradoxo da ciência histórica é que justamente quando, sob suas diversas formas (incluindo o romance histórico), ela conhece uma popularidade sem par nas sociedades ocidentais, e logo quando as nações do Terceiro Mundo se preocupam antes de mais nada em dotar-se de uma história – o que de resto talvez permita tipos de história extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal –, se a história tornou-se, portanto, um elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva, logo agora a ciência histórica sofre uma crise (de crescimento?): no diálogo com as outras ciências sociais, no alargamento considerável de seus problemas, métodos, objetos, ela pergunta se não começa a perder-se.
À história estão intimamente conectados dois progressos essenciais: a definição de pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, era cristã, hégira e assim por diante) e a busca de uma periodização, a criação de unidades iguais,mensuráveis, de tempo: dia de vinte e quatro horas, século, etc.Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. 3-4) A oposição passado/presente é essencial na aquisição da consciência do tempo. Para a criança, "compreender o tempo significa libertar-se do presente" (Piaget), mas o tempo da história não é nem o do psicólogo nem o do linguista Todavia o exame da temporalidade nestas duas ciências reforça o fato de que a oposição presente/passado não é um dado natural mas sim uma construção. Por outro lado, a constatação de que a visão de um mesmo passado muda segundo as épocas e que o historiador está submetido ao tempo em que vive, conduziu tanto ao ceticismo sobre a possibilidade de conhecer o passado quanto a um esforço para eliminar qualquer referência ao presente(ilusão da história romântica à maneira de Michelet – "a ressurreição integral do passado' – ou da história positivista à Ranke – "aquilo que realmente aconteceu'). Com efeito, o interesse do passado [pg. 014] está em esclarecer o presente; o passado é atingido a partir do presente (método regressivo de Bloch). Até o Renascimento e mesmo até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais surgindo para eles como uma época de inocência e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades-do-ouro, o paraíso terrestre... a história do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadência. Esta ideia de decadência foi retomada para exprimir a fase final da história das sociedades e das civilizações; ela se insere num pensamento mais ou menos cíclico da história (Vico,Montesquieu, Gibbon, Spengler, Toynbee) e é em geral o produto de uma filosofiar e acionária da história, um conceito de escassa utilidade para a ciência histórica. Na Europa do final do século XVII e primeira metade do XVIII, a polêmica sobre a oposição antigo/moderno, surgida a propósito da ciência, da literatura e da arte,manifestou uma tendência à reviravolta da valorização do passado: antigo tornou-se sinônimo de superado, e moderno de progressista. Na realidade, a ideia de progresso triunfou com o Iluminismo e desenvolveu-se no século XIX e início do XX, considerando sobretudo os progressos científicos e tecnológicos. Depois da Revolução Francesa, à ideologia do progresso foi contraposto um esforço de reação, cuja expressão foi sobretudo política, mas que se baseou numa leitura "reacionária" da história. Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e as destruições da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encarnação histórica "objetiva" de um possível apocalipse –, a descoberta de culturas diversas do ocidente conduziram a uma crítica da ideia de progresso (recorde-se La crise du progrès, de Friedmann, de 1936). A crença num progresso linear, contínuo,irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. A história que não domina o futuro passa a defrontar-se com crenças que conhecem hoje um grande revival: profecias, visões em geral catastróficas do fim do mundo ou, pelo contrário, revoluções iluminadas, como as invocadas pelos milenarismos tanto nas seitas das sociedades ocidentais quanto em certas sociedades do Terceiro Mundo. É o retomo da escatologia [pg. 015].
Mas a ciência da natureza e, em particular, a biologia mantêm uma' concepção positiva, se bem que atenuada, do desenvolvimento enquanto progresso. Estas perspectivas podem aplicar-se às ciências sociais e à história. Assim, a genética tende a recuperar a ideia de evolução e progresso, porém, dando mais espaço ao evento e - às catástrofes (Thom): a história tem todo o interesse em inserir na sua problemática a ideia de gênese -'dinâmica – no lugar daquela, passiva, das origens, que Bloch já criticava.
5) Na atual renovação da ciência histórica, que se acelera, quanto mais não seja ao menos na difusão (o incremento essencial veio com a revista 'Annales', fundada por Bloch e Febvre em 1929), um papel importante é desempenhado por uma nova concepção do tempo histórico. A história seria feita segundo ritmos diferentes e a tarefado historiador seria, primordialmente, reconhecer tais ritmos. Em vez do estrato superficial, o tempo rápido dos eventos, mais importante seria o nível mais profundo das realidades que mudam devagar (geografia, cultura material, mentalidades: em linhas gerais, as estruturas) – trata-se do nível das "longas durações" (Braudel). O diálogo dos historiadores da longa duração com as outras ciências sociais e com as ciências da natureza e da vida – a economia e a geografia ontem, a antropologia, a demografia e a biologia hoje – conduziu alguns deles à ideia de uma história "quase imóvel" (Braudel,Le Roy Ladurie). Colocou-se então a hipótese de uma história imóvel. Mas a antropologia histórica caminha no sentido contrário da idéia de que o movimento, a evolução se encontrem em todos os objetos de todas as ciências sociais, pois seu objeto comum são as sociedades humanas (sociologia, economia mas também antropologia). Quanto à história, ela só pode ser uma ciência da mutação e da explicação da mudança.Com os diversos estruturalismos, a história pode ter relações frutíferas sob duas condições: a) não esquecer que as estruturas por ela estudadas são dinâmicas; b) aplicar certos métodos estruturalistas ao estudo dos documentos históricos, à análise dos textos (em sentido amplo), não à explicação histórica propriamente dita. Todavia podemos perguntar-nos se a moda do estruturalismo não está ligada a uma certa recusa da história concebida como ditadura do passado, justificativa da "reprodução" (Bourdieu), poder de [pg. 016]
repressão. Mas também na extrema esquerda reconheceu-se que seria perigoso fazer "tábula rasa do passado" (Chesneaux). O "fardo da história" no sentido "objetivo"do termo (Hegel), pode e deve encontrar o seu contrapeso na ciência histórica como"meio de libertação do passado" (Arnaldi).
6) Ao fazer a história de suas cidades, povos, impérios, os historiadores da Antiguidade pensavam fazer a história da humanidade. Os historiadores cristãos, os historiadores do Renascimento e do Iluminismo (não obstante reconhecessem a diversidade dos "costumes") pensavam estar fazendo a história do homem. Os historiadores modernos observam que a história é a ciência da evolução das sociedades humanas. Mas a evolução das ciências levou a pôr-se o problema de saber se não poderia existir uma história diferente daquela do homem. Já se desenvolveu uma história do clima; contudo, ela apresenta um certo interesse para a história só na medida em que esclarece certos fenômenos da história das sociedades humanas (modificação das culturas, do habitat, etc.). Agora se pensa numa história da natureza (Romano), mas ela reforçará sem dúvida o caráter "cultural" – portanto, histórico – da noção de natureza. Assim, através das ampliações do seu âmbito, a história se torna sempre co-extensiva em relação ao homem.Hoje, o paradoxo da ciência histórica é que justamente quando, sob suas diversas formas (incluindo o romance histórico), ela conhece uma popularidade sem par nas sociedades ocidentais, e logo quando as nações do Terceiro Mundo se preocupam antes de mais nada em dotar-se de uma história – o que de resto talvez permita tipos de história extremamente diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal –, se a história tornou-se, portanto, um elemento essencial da necessidade de identidade individual e coletiva, logo agora a ciência histórica sofre uma crise (de crescimento?): no diálogo com as outras ciências sociais, no alargamento considerável de seus problemas, métodos, objetos, ela pergunta se não começa a perder-se.
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